15 de jun. de 2015

Movendo-se Através do Medo

Tradução de Moving Through Fear, de Dan Edwardes, originalmente publicado em 18 de junho de 2013, feita pela Ju (também conhecida como Juliana Fajardini), originalmente publicada no Traduções da Taverna em 11 de junho de 2015.

dan_batman-jump São os pequenos medos que silenciosamente roubam nossas vidas. As grandes preocupações - morte, perda, o significado da existência… essas coisas, no geral, nós podemos ignorar, e de fato ignoramos, na maior parte de nossos dias. Filósofos e teólogos podem especular e preocupar-se com os detalhes de tais imponderáveis, mas a maioria de nós não tem o tempo, ou a inclinação, ou talvez tenha simplesmente sorte de não sofrer com o fardo do excesso de curiosidade. E alguns medos são racionais, é claro, e podem ser aliados de nossas vidas; o medo que aguça nossa percepção em uma parte escura da cidade, por exemplo, ou o medo de cair que sentimos de repente quando paramos muito próximos à borda de um precipício em um dia com muito vento.

O medo, no entanto, é um bicho esperto. É atrás da fachada razoável do medo que o verdadeiro perigo se esconde, armado como o rabo do escorpião, sempre pronto para ferroar.

Quanto de seu dia é entregue aos pequenos medos? É mais do que você pensaria inicialmente. Eles são do tipo que quase não notamos, e ainda assim raramente ignoramos. Eles são os medos que tornam cada dia confortável: o medo de nos sobressairmos que nos dobra a todos para nos conformarmos de quase todos os modos; o medo de rirem de nós que nos mantém em silêncio quando preferiríamos gargalhar bem alto; o medo da rejeição que nos leva a evitar tantas conexões em potencial. São medos aos quais estamos acostumados, pois são eles que nos fazem passar o dia sem problemas e com o mínimo de conflitos possível. São os medos que nos levam a ser pontuais no trabalho, que evitam que desafiemos as opiniões e métodos de nossos superiores. Os medos que nos impelem aos chamados objetivos respeitáveis ditos válidos de alcançar. Esses são os medos que nos fazem engolir venenos quando jovens, pois assim nossa galera irá nos aceitar.

O medo garante que estejamos constantemente na defensiva, sempre respondendo no presente às nossas piores visões do que o futuro irá trazer caso não estejamos. O medo das consequências limita as ações que tomamos. O medo torna-se o ator em nossas vidas, enquanto nós gradualmente nos juntamos à audiência, tornando-nos expectadores passivos dos eventos rotineiros de cada um de nossos preciosos dias. E assim se dá que gastamos tanto tempo cedendo aos nossos medos que nossas vidas passam por nós, até que não reste sequer um lamúrio, muito menos uma explosão, ao final.

O que tudo isso tem a ver com parkour?

Tudo.

Porque praticar parkour é buscar o medo diariamente, é confrontá-lo de cabeça erguida, encará-lo despido e solitário. No parkour, você está reduzido à sua essência. Não há equipamentos nos quais confiar, não há aparelhos de segurança ou acolchoados para protegê-lo, não há colega para assumir o peso quando você está cansado. É você, e apenas você. As únicas coisas que evitam que você se machuque ou lesione são as suas competências, seu julgamento, sua habilidade - e de ninguém mais. Agora, isso em si é uma grande percepção; mas também pode ser um grande peso. É você e apenas você quem enfrenta seus medos; as teorias de outras pessoas não têm qualquer importância aqui. Você não pode entender os seus medos com base em Freud ou Jung ou qualquer outro - eles não estão com você quando você pula para um cat ou cai e faz um rolamento; eles não estão lá quando você salta sobre um obstáculo. Nesses momentos há apenas você.

forrestroofParkour é movimento, e todo movimento está conectado ao medo. É através de um princípio conhecido como reatividade ao medo[1] que nossos corpos aprendem na tenra idade o que não fazer, como não se mover, por que não cair. Nós aprendemos a evitar a dor e buscar o conforto, e se experimentamos desconforto devido a uma certa ação nossos corpos de fato nos desencorajam a tentar essa ação em particular novamente. Dito de modo simples, reatividade ao medo é nosso padrão de comportamento condicionado envolvendo movimento, respiração e postura. É “uma reação aprendida e condicionada ao estresse, choque ou trauma. Ela se incorpora em cada um de nós; ninguém escapa a ela.”[2]

Obviamente este condicionamento é de algo que passou. Nossos corpos estão reagindo no presente ao medo do que ocorreu no passado. Assim, o medo é do passado. Ele vive na memória, e de lá é projetado no futuro, e usualmente nos encontramos vivendo com medo de um ou outro - o passado ou o futuro. Ora, isso significa que no momento presente o medo não existe de fato. Então, para estarmos livres do medo, o que temos de fazer é viver nesse momento presente, viver plenamente aqui e agora. Não é fácil. Mas o parkour é uma disciplina que pode nos ajudar.

É um fato que nosso potencial e talento físico naturais vão muito além do que nos limitamos a fazer. É nosso condicionamento, mental e físico, que nos impede de acessar tal capacidade natural, e portanto não é tanto a aquisição de habilidades e técnicas que nos levará a explorar este talento quanto um nos despojarmos de nossas próprias limitações. Não se trata de aumento regular, mas de decréscimo regular. Nós só precisamos escapar de nosso próprio jeito para encontrar nosso potencial. Precisamos eliminar nossos medos para libertar nossa graça e habilidade naturais. Tanto mental quanto fisicamente, a prática do parkour demanda que nós estejamos completamente focados no momento e libertos de velhas limitações; afinal de contas, toda a sua abordagem é sobre libertar-se de limites. E é nesse momento de pura prática que nós podemos começar a superar nossa própria reatividade ao medo, por estarmos atentos a ela e nos libertando de seus padrões.

cat-balanceÉ um processo. Preste atenção a si mesmo; observe. Note as dúvidas, as hesitações, os padrões negativos e as tensões em seu corpo enquanto você se move. Perceba que tais coisas são todas escolhas que você pode evitar. Tensão é uma escolha. Teste agora. Realize um autodiagnóstico rápido de seu corpo e você provavelmente notará que alguns músculos estão desnecessariamente tensos: agora escolha relaxar esses músculos. Fácil, uma vez que você está consciente de onde as tensões estão. O truque é encorajar esta consciência a emergir tão frequentemente quanto possível, e nós podemos facilitar isso ficando ativamente mais conscientes durante a prática. Desse modo nós aprendemos a escolher nossas ações e respostas ao invés de simplesmente sermos um produto de nossas reações. Daí vem a habilidade de explorar seu verdadeiro potencial, e disso vem a maestria. É aí onde o “Flow” habita.

Quanto mais apto você estiver em trazer seu foco plenamente para onde está, para o que está fazendo, menos energia e pensamentos você perderá para medos nascidos do passado e do futuro. Tudo o que resta é ação, completa e pura. Este conceito possui muitos nomes em muitas culturas e filosofias - mas, de novo, o nome que alguma outra pessoa deu para algo não é seu. Pratique isso, experimente isso, mergulhe nisso; e então você descobrirá que não precisa ter um nome pra isso.

Medo é uma coisa estática; não vive no movimento. Imagine uma trilha na selva à noite. Você caminha pela trilha de modo desconfiado, sua mente imaginando um ataque repentino de uma cobra ou uma aranha caindo das copas acima; você percebe o medo então, e ele cresce a cada passo que você dá. No entanto, imagine o que acontece quando aquela cobra de fato dá o bote de repente - você reage instintivamente, seu corpo e mente repentinamente absorvidos por completo pelo momento em um esforço combinado para saltar para longe do ataque: a reação de alarme. Naquele momento, não há qualquer tipo de medo. Todo o seu ser está engajado em escapar, no movimento. O medo existia antes do ataque, e irá sem dúvida retornar após o ataque (se você for rápido o suficiente, é claro!), mas no breve momento da ação o medo não existiu.

O que é fascinante é que pelo período muito mais longo no qual você esteve na trilha, sentindo-se assustado, o fato é que você estava bastante seguro e não estava sendo atacado. Durante o curto período em que você esteve realmente em perigo, o medo cessou de existir. Entusiastas de esportes extremos de todas as disciplinas bem como sobreviventes de situações extremas geralmente atestam a mesma coisa: em momentos de grande pressão e necessidade, a mente ansiosa sai do caminho e permite que nossas habilidades latentes, aparentemente super-humanas, assumam. Nós atravessamos o medo, e ele perde seu poder sobre nós.

Agora imagine como seria expandir o momento de não-medo de modo que ele se espalhasse pelo resto do tempo na trilha. O estado resultante é de alerta e prontidão permanentes, mas que não reguer esforço ou paranoia; de fato, é totalmente oposto à paranoia, que é a completa absorção de alguém por seus medos projetados. É um estado de movimento gracioso e eficiente, livre da reatividade ao medo e tensão muscular residual e em harmonia com o pensamento mais do que em conflito com ele. Esta é nossa verdadeira natureza, a que reside escondida na maior parte de nossas vidas até que aprendamos a nos mover para além do medo.

Você pode até descobrir que, sem medo, a caminhada na selva escura se transforma em uma experiência agradável.
peter-parkour


[1] No inglês, fear-reactivity. Não foi encontrada uma tradução oficial para o termo.
[2] Scott Sonnon, Body-Flow: Freedom from Fear-Reactivity, 2003, p.14
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